Via Extra.
SÃO PAULO - O cenário: um apartamento entulhado, paredes cobertas por estantes de livros e quinquilharias de toda sorte, como uma coleção de máscaras de Veneza; sofás encardidos; um papagaio na gaiola; e uma “assistente” jovem e bem-apessoada fazendo as vezes de dona da casa. No Centro de São Paulo, perto da Cracolândia, vive José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ele prefere conversar no bar embaixo do prédio, tomando “uma coisinha”. Outro cenário: um pé-sujo com azulejos brancos no chão e nas paredes, alguns sujeitos estranhos no balcão e um salão vazio, cuja única brisa sopra de um ventilador barulhento. São três da tarde, e o calor beira o insalubre em meio à concretude do centrão paulistano.
Eu vou pedir uma caipirosca — diz Mojica, camisa vermelha, cinto de caveira e sorriso desdentado escancarado.
Apesar das aparências, a encarnação do Zé do Caixão não assusta. Só um pouquinho, quando distraidamente escorrega a mão sobre a sua coxa ou passa o braço por seus ombros. Às vésperas de completar 75 anos, no dia 13 de março — ele só poderia ter nascido num dia 13 —, Mojica está vivinho da silva. E cheio de projetos. Sua vida vai virar um filme: “Maldito”, baseado na biografia dos jornalistas Ivan Finotti e André Barcinski, lançada em 1998. O ator Matheus Nachtergaele já está escalado para viver o inventor do terror brasileiro no cinema. A direção é do estreante Vitor Mafra, que começa a rodar até o fim do ano. Mojica participou da elaboração do roteiro ao lado de Barcinski e Mafra. Ele também continua na TV: a quarta temporada da série “O estranho mundo de Zé do Caixão” estreia em março, no Canal Brasil. E ainda tem na cachola a ideia para mais uma “fita”, a 38 de sua filmografia: “Sete ventres para o demônio”, três anos depois da última, “Encarnação do demônio”. Zé do Caixão ainda será homenageado pela Unidos da Tijuca no carnaval: o carnavalesco Paulo Barros batizou o enredo sobre o medo no cinema de “Esta noite levarei sua alma”.
Li a biografia em 2004. Eu já era apaixonado pela obra do Mojica. Ao ler, pensei em um filme místico e transcendental aliado a um personagem quixotesco — diz Mafra. — O Mojica sempre usou o cinema para pegar mulher. Uma figura. Começamos, eu e o Barcinski, a pensar o roteiro em 2008. Não vai ser uma saga biográfica. Fizemos um recorte: vai da criação do Zé do Caixão, em 1963, até 1977, quando ele entra em coma. O Mojica tem essa questão da pós-morte. Ele foi lá e voltou. Achei que seria um bom jeito para terminar.
Cultuado mais fora do Brasil, onde é conhecido como Coffin Joe, do que aqui, Mojica rende histórias sem fim. Barcinski e Finotti, autores da biografia publicada pela Editora 34, receberam menção especial do júri no festival de Sundance de 2001, com o documentário “Maldito — O estranho mundo de José Mojica Marins”.
Conheço o Mojica desde 1985. Começamos a escrever a biografia em 92. Não existia nada sobre ele. No começo dos anos 90, saíram 13 filmes dele em VHS nos Estados Unidos. Ele virou cult — comenta Barcinski. — O Mojica é um personagem único no cinema brasileiro. Um cineasta que não se encaixou em nenhum movimento e participou de todos. Um autodidata que influenciou de Glauber Rocha a Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. Fez e faz um cinema livre de todas as convenções.
O personagem Zé do Caixão nasceu “no dia 11 de outubro de 1963, praticamente”. Mojica adora duas palavras, que repete em quase todas as frases: praticamente e realmente. Zé do Caixão baixou num sonho. Ou num pesadelo. Na época, Mojica já era um cineasta com vários filmes no currículo, do faroeste à pornochanchada. O primeiro curta-metragem é de 1945: “A mágica do mágico”. E o primeiro longa, de 1958: “Sina de aventureiro”.
Fui dominado por pesadelos por anos. Pus um caderninho ao lado da minha cama e anotava tudo de manhã. Minha mulher dizia que eu andava pela casa falando coisas e dizendo o nome Zé do Caixão. Eu sofria daquele negócio, como é que é o nome? Sonamblismo (sic) — diz Mojica, sempre destituído de plurais ou concordâncias verbais. — Aí, fui quebrar as regras e fiz um filme de terror. Não tinha gente para trabalhar comigo, praticamente. Os poucos técnicos que vieram tiveram que atuar também. Nasceu um personagem realmente ateu, que só acredita nele. O Zé do Caixão deixou as pessoas abobadas. Eu era adorado pelo Barretão (Luiz Carlos Barreto), pelo Glauber, pelo Sganzerla, pelo Bressane. Acho que o Glauber foi o primeiro a dizer em público que eu era um gênio.
Zé do Caixão estreou no hoje clássico “À meia-noite levarei sua alma”. Por falta de atores, Mojica foi obrigado a incorporar o personagem, que, aliás, nunca desencorporou. Segundo ele, o Zé do Caixão tem até um nome de batismo: Josefel Zanatas. Nos sonhos do diretor, ele era um vulto que o arrastava até o próprio túmulo. Mojica tornou-se famoso pelo estilo rude de filmar, baseado na improvisação, na falta de recursos técnicos e em histórias objetivas. Antes de iniciar a saga do Zé do Caixão, já flertava com o suspense. Havia fundado o estúdio Companhia Cinematográfica, depois Companhia Cinematográfica Apolo, no bairro do Brás, onde dava aulas de cinema e fazia testes, utilizando bichos como ratazanas e baratas, para “tirar a emoção, o horror dos atores”. “À meia-noite levarei sua alma” marca o nascimento do gênero terror no Brasil.
O Zé do Caixão era um jovem, dono de necrotério, que vai para a guerra e, quando volta, encontra a amada casada com o prefeito. E a mata. Nunca mais consegue amar. Mas quer filhos. Então começa a lutar para arrumar uma mulher perfeita para ser a mãe. A luta dele resiste até hoje. Na próxima fita, ele vai ter filhos: “Sete ventres para o demônio” — comenta Mojica, pai de sete, um deles pastor nos Estados Unidos. — Faço filmes em sete dias, praticamente. O melhor que fiz, “À meia-noite...”, foi feito em 13.
— “O despertar da besta” é meu filme mais polêmico, uma fita considerada política — diz Mojica. — Ficou preso 20 anos, praticamente. Ao prenderem o filme, as poucas pessoas que acreditavam em mim sumiram, com medo. Se ele não tivesse sido detido pela censura, eu teria mudado a história do cinema.De 1963 até meados dos anos 70, Mojica viveu o auge. Ganhou um programa na TV Tupi, era personagem de quadrinhos e possuía vários produtos licenciados com a marca Zé do Caixão. Em 1969, porém, começou a descer a ladeira. O marco foi a proibição pela censura do filme “O despertar da besta”, considerado por muitos a sua grande obra. Produtores e investidores desapareceram. Mojica não conseguia mais trabalhar. Entrou em depressão, passou a beber muito, em 1977 teve um infarto que o deixou em coma por cinco dias e, nos anos 80, sumiu.
Para sobreviver na década de 80, o nada modesto Mojica fez de tudo, de filmes sob encomenda a fitas de sexo explícito.
Dirigi meia dúzia de fitas pornô. Diziam que eu não sabia fazer. Os caras demoravam 20, 30 dias para fazer um filme. Eu me lembro que cheguei para um produtor e perguntei: “Você quer o filme em quanto tempo?” Ele respondeu: “Quinze dias”. Prometi que entregaria em quatro — conta. — Fui para o Porto de Santos, escolhi as meninas. Filmei “24 horas de sexo explícito”. Depois veio “48 horas de sexo explícito”. Eu fazia coisas que os caras do pornô nem sabiam que existiam. Cheguei a cobrar para os diretores me verem filmar, porque eles queriam aprender.
Mojica foi criado dentro de uma sala de exibição. Os pais eram artistas circenses e, depois do nascimento do filho, o pai assumiu a gerência de um cinema na Vila Anastácio, próximo à Lapa paulistana. Como filho do dono do cinema, Mojica cresceu “o rei do bairro”. Já então era esquisito, “cheio de ideias meio doidas”. Numa peça da igreja, por exemplo, inventou de colocar uma lagartixa sobre a Cinderela para acordá-la do sono eterno. Ele não gostava de estudar. Terminou o primário às custas de uma chantagem com a professora: pegou-a transando com o diretor e ameaçou espalhar a história. Com 12 anos, ganhou uma câmera de filmagem do pai. Sumiu de casa por três meses. Com um grupo de amigos, caminhou até o Rio, ganhando a vida com pequenos filmetes de estrada.
Como eu pensava doido, achava que as outras pessoas também pensavam. Não sabia que eu era diferente. Fui um garoto superdotado. Já vim realmente com ideias estranhas — avalia Mojica. — Quando ganhei a câmera, passei a fazer experiências. Por isso me chamam de experimental. Ninguém arriscava, só eu. Depois que prenderam “O despertar da besta”, fiquei numa situação difícil. Eu tomo nove remédios para dormir. E vou a muito médico de cabeça.
O coração, porém, só parou uma vez, lá em 1977:
Meu pai tinha morrido, meu filme havia sido preso, eu me compliquei todo. Fiquei cinco dias numa mesa, tentando sobreviver. Parecia que eu não ia voltar mais. Eu vi um deserto grande, calor intenso, um sol que tornava tudo branco. Achei que era o meu fim, porque você sabe o que está acontecendo. Quando pensei que tinha partido, ouvi vozes do meu lado. Abri o olho e vi três assistentes minhas, lindas de morrer, umas gostosas. Tive certeza de que o paraíso é aqui.
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