Quando o cineasta autodidata José Mojica Marins trouxe à vida, em meados da década de 1960, a sádica e amoral personagem Zé do Caixão, é bem provável que não imaginava a repercussão que tal figura causaria no imaginário popular. Mojica é um dos maiores cineastas de nossa história, dono de uma filmografia espetacular - produziu longas, médias e curtas-metragens, e outras tantas películas inacabadas. Dono de uma estética singular e de uma aparência que chama a atenção, Mojica se aventurou em muitos gêneros, até encontrar o estilo que o levaria a ser reconhecido como diretor. O horror lhe consagraria e transformaria sua personagem principal numa lenda.
Sucesso aqui e em outros países do mundo, Zé do Caixão foi, sem dúvida, sua criação de maior impacto. Ele polemiza e assusta até os mais céticos. Causa repulsão ao debochar da crença alheia, ao desafiar tanto a existência de Deus quanto a do Diabo, e ao ridicularizar tudo e todos que ousem cruzar seu caminho. Adepto a costumes bizarros, Zé come carne em dia santo, bebe sangue humano, arranca a coroa da imagem de Cristo e oferece num banquete partes dos corpos de quem outrora foram seus convidados. Ele carrega consigo o mal e age indiscriminadamente sem, ao menos, aparentar remorso. Profana o sagrado, trai, mata, amaldiçoa... Com a ideia fixa de gerar o filho que carregará seu sangue e o tornará imortal, segue na busca pela mulher perfeita, não medindo esforços para alcançar seu objetivo.
Essa é a essência da história narrada na trilogia nefasta, composta pelos títulos À meia noite levarei sua alma (1963), Esta noite encarnarei no teu cadáver (1966) e Encarnação do demônio (2008), que só pôde ser concluída 40 anos depois de iniciada. É a obra-prima de Mojica e a consumação de Zé do Caixão como personagem mística, sombria e fabulosa. Por fim, um dos símbolos de nossa cultura. Porém, muitas vezes Mojica se viu obrigado a mudar algumas sequências de seus filmes, que se desdobravam de acordo com a conduta maldita da personagem. Devido a censura, o diretor chegou a regravar cenas e redublar trechos nos quais Zé desafiava violentamente os preceitos da moral e dos bons costumes. Isso tudo para que pudesse ter a chance de exibir suas obras. Foi o preço cobrado para continuar a fazer o que mais amava: cinema.
O que é o inferno, pergunta a criatura num dado momento. Ora, quem dera um dia possamos responder esta pergunta. Que nós (ou pelo menos os mais interessantes entre nós) tenhamos a oportunidade de conhecê-lo, senão por merecimento, ao menos por curiosidade, e que possamos compartilhar das maravilhas e das loucuras idealizadas por Mojica. Afinal, seria o inferno do modo como ele o imaginou? Colorido, gélido e com cheiro de pipoca? Essa questão mais cedo ou mais tarde nos será revelada, se Deus quiser!
Ótimo texto. Só coloque os títulos dos filmes em itálico, para diferenciar.
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